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Psicóloga clínica que realizou por 10 anos atuação na Saúde mental da PBH e atualmente dedica aos atendimentos particulares. Participa de artigos nas Revistas Vox objetiva e Tendência Inclusiva. Realiza palestras e entrevistas na mídia impressa e televisiva.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Amar Demais - Excelente Matéria de Cássio Teles / Revista VOX

Amar demais

por Cassio Teles

Especialistas discutem a codependência afetiva: um problema grave que nem sempre recebe a atenção devida (Foto:Shutterstock)
Os dilemas e conflitos internos das ‘Mulheres de Atenas', apresentados na canção de Chico Buarque e Augusto Boal, retratam a vida de absoluta dedicação e doação das atenienses da Grécia Antiga aos seus maridos e filhos. Os versos lançam luz sobre um problema que persiste ainda na chamada pós-modernidade - período marcado pela liquidez de relacionamentos e pelo desapego.

Mulheres de todas as idades e classes sociais, de donas de casa a profissionais brilhantes, mergulham em relacionamentos tidos como doentios. Elas vivem em constante falta de respeito mútuo e, sobretudo, por si. São tidas como as ‘mulheres que amam demais'. A expressão que surgiu em 1985, com o lançamento do livro da psicóloga e terapeuta familiar americana Robin Norwood. Ela traçou um comportamento comum entre mulheres que se envolviam afetivamente com dependentes químicos. Esses relacionamentos foram denominados de ‘codependência'.

Foi depois de ler o livro de Robin que uma dona de casa belo-horizontina, que pediu sigilo, percebeu a necessidade de ajuda. Ela procurou auxílio num grupo formado por mulheres que apresentam sintomas da codependência. Lá, todas são orientadas a seguir 12 passos, adaptados do grupo Alcóolicos Anônimos, para se recuperar. "Eu cheguei ao grupo buscando em relacionamentos a validação pessoal. Isso é errado. Eu queria que o outro me desse aquilo que eu não tinha, no caso, a autoestima. Com a leitura e o compartilhar nas reuniões, praticando a programação de 12 passos, a gente vai aprendendo a se gostar e a se aceitar como é. Aprendemos também a conviver com pessoas saudáveis", revela. Após a separação, que envolveu traição do companheiro, a dona de casa, de 55 anos, teve dois relacionamentos frustrados com "pessoas indisponíveis", segundo ela. Hoje, ela vive uma nova etapa da vida. Está namorando há quase dois anos.

Para a psicoterapeuta Marisa Sanábria, relacionamentos que envolvem pessoas fragilizadas são um vícios igual aos outros. "Esse tipo de relacionamento se caracteriza por uma impossibilidade de um escolher coisas boas para si. São relacionamentos construídos a partir de uma baixa autoestima, de uma falsa percepção de que a pessoa não tem direitos, que não pode fazer escolhas e, principalmente, de que ela não pode ser feliz. São relacionamentos atormentadores", explica a psicoterapeuta coordenadora da Comissão de Mulheres e Questões de Gênero do Conselho Regional de Psicologia.
Hoje a dona de casa ouvida pela reportagem da Vox Objetiva se considera uma pessoa em paz consigo e contente com a vida. "Eu era uma pessoa muito insatisfeita, muito infeliz e não valorizava nada da vida . Hoje, graças a Deus, mudou muito. Eu agradeço a vida que eu tenho e o que eu sou". Mãe de três filhas e avó de um neto, ela participa do grupo de apoio em Belo Horizonte desde 2003 e acredita que a recuperação passe pelo suporte encontrado nas reuniões.

De acordo com Sanábria, fatores culturais, como o machismo e o preconceito contra mulheres sozinhas, são propulsores desse comportamento em que a mulher recebe, desde a criação, a missão de viver pelo outro, de ser uma esposa dedicada e uma mãe abnegada. "Por mais que a gente esteja na modernidade, no século XXI, esses traços do ‘eu me postergar em nome do bem-estar do outro' se mantêm em nossas mulheres. Existe uma dificuldade feminina em se colocar como prioridade. A partir daí, vai surgir uma relação de culpa muito difícil de ser suportada", explica. Além disso, para a psicoterapeuta, somado ao preconceito, traços muito femininos devem ser considerados: a fantasia do amor romântico e a ideia de que só é possível ser feliz por meio do outro.

J.M.B, de 55 anos, viveu por quase dois em uma relação marcada pela codependência. Após se separar e, segundo ela, ter vivido casamento saudável, a assistente social, à época com 51 anos, imaginava que todos os relacionamentos posteriores seriam uma reprodução da experiência acumulada. "Eu pensava que teria uma relação estável com os homens com os quais eu viria a me relacionar. Era isso que passava pela minha cabeça", lembra. No entanto, o tempo veio provar o contrário. Somaram-se três relacionamentos fugazes e um quarto, perene, mas, segundo ela, "terrível e triste". "Eu passei a gostar demais e me via presa a ele. Fiquei com um tipo de encantamento; uma coisa louca; uma paixão adolescente aos 50 anos. Penso que esse aprisionamento tenha acontecido por três motivos: primeiro, era a minha situação pessoal: eu estava muito desacreditada de mim mesma; segundo, ele é uma pessoa muito inteligente, muito politizada; e, em terceiro, sexualmente falando, ele era uma pessoa muito diferente das dos outros relacionamentos que eu tive antes. Eu me encantei com isso", explica.

Outro fator que contribuiu para que o relacionamento fosse elevado a outro patamar foi a situação frágil em que ele se encontrava: era um jovem estudante, imigrante, sem contatos e com vários problemas de ordem pessoal. Ao oferecer suporte, J.M.B. entendeu que o jovem acabaria ficando com ela. Mas a contrapartida da dedicação da assistente social foi algo inesperado. Rotineiramente, o namorado a magoava com ataques pessoais e via facebook. Não bastasse isso, o jovem mantinha relacionamentos secretos com outras mulheres. Os problemas do casal eram sempre relevados por ela pelo fato de gostar demais do parceiro. Foram muitas idas e vindas. Entretanto, o namoro não resistiu à descoberta da primeira traição comprovada. "A partir daí, eu fui me desencantando, nós fomos nos separando até que, em fevereiro deste ano, colocamos um ponto-final na história". Segundo J.M.B, a superação completa só veio quando ela começou a se relacionar com outro rapaz, também mais novo. A experiência com o namoro anterior contribuiu para o amadurecimento. "Hoje estou com esse rapaz. Agora eu estou curtindo a relação, mesmo estando gostando dele, mas é só brincadeira na minha cabeça. Não é um sofrimento; é uma coisa gostosa, leve. Eu não fico pensando: ‘Ai, será que esse menino vai ficar comigo?'", revela.

Histórias como a de J.M.B. são mais comuns do que é possível imaginar. Mas ao contrário dela, há quem não consiga se desvencilhar do ‘amar demais' de forma autônoma, tendo que procurar ajuda em grupos de apoio. O grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (Mada) se popularizou nacionalmente por meio da personagem Eloísa, vivida por Giulia Gan, na novela global ‘Mulheres Apaixonadas', de 2003. A personagem tinha ciúmes incontroláveis do namorado mais novo. Surtos aconteciam com a impossibilidade de a personagem ter filhos, o que trazia inseguranças em relação ao interesse do parceiro. Na trama, ela buscava ajuda no grupo para se recuperar.

Hoje, o Mada, que é restrito a mulheres, promove cerca de 50 reuniões semanais no Brasil. O grupo está presente em 11 estados e no Distrito Federal. Há grupos também em Portugal e na Venezuela. De acordo com a página do Mada na internet, as mulheres que frequentam as reuniões são recomendadas a não dar conselhos nem fazer críticas. Elas só podem falar de suas experiências e ouvir histórias semelhantes.

Além do Mada, existem grupos com o mesmo propósito, mas que abarcam toda a diversidade de gêneros. É o caso do Codependentes Anônimos (Coda), uma organização voltada para construção de relações saudáveis, promoção do autoconhecimento e ajuda no processo de reabilitação de pessoas com compulsão sexual. O grupo Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (Dasa) é outra organização que abarca temas como codependência, inclusive o oposto, como anorexias sexuais, sociais e emocionais. Todos se baseiam nos 12 passos da superação pessoal.

Para Marisa Sanábria, a participação em grupos voltados para a recuperação de codependentes pode ser importante, mas não descarta o acompanhamento individual com um profissional. "Nós sabemos que essa é uma doença que precisa de tratamento. No caso das codependências, nós estamos falando de situações que geram muito sofrimento, em que as pessoas têm que ser ajudadas para poderem sair. E isso é feito com psicoterapias e acompanhamento. Eu não sei se esses grupos funcionam com terapeutas e se há um propósito de um enquadramento terapêutico. Se a gente se relaciona com um grupo e ele funciona, é porque nós nos identificamos, e temos, mais ou menos, o mesmo problema. Então isso produz uma ressonância", explica.

O psicanalista Rodrigo Pardini concorda com Marisa. Segundo ele, na maioria das vezes, quando pede socorro, a pessoa já passou por vários episódios de violência e fracassos nos relacionamentos. "Curiosamente, o doente sabe que precisa de ajuda, embora demore a buscá-la. Quando recebo uma pessoa assim em meu consultório, é porque já aconteceram brigas, casos extremos de violência, inclusive com o acionamento da polícia. Mas, em determinado momento, tudo é esquecido, e o relacionamento se mantém. O doente cria um invólucro para o parceiro não ir embora. Então, assim como os alcoólatras, que negam o vício, temos os codependentes e viciados em relacionamentos que só se dão conta de que estão doentes com o tempo", detalha. Pardini relata que o isolamento e a depressão são recorrentes. Há casos em que a família precisa intervir. "Chega a uma situação em que a pessoa só consegue enxergar o outro, pensar no outro, começa a enfrentar problemas no trabalho, liga o tempo todo e se separa, mas depois volta. Elas ficam com vergonha de contar para a família e se isolam, afastando dos amigos que, às vezes, as recriminam por reatarem o namoro, o relacionamento", arremata.

Com vasta experiência no atendimento a casais, em que um dos parceiros é codependente, a psicóloga e articulista da Vox Objetiva, Maria Angélica Falci, apresenta as possíveis consequências para o doente. "Há pessoas que agravam a baixa autoestima e se anulam; apresentam fobias sociais, depressões, surtos psicóticos, explosões passionais, obsessões e ciúme patológico", cita. A psicóloga entende que o primeiro passo para a recuperação é o desejo por romper o ciclo. "Há casos em que se consegue uma recuperação plena. Outros requerem uma manutenção constante. Mas é importante a consciência de que o melhor é sair de uma situação de risco que agride, acua e oprime a individualidade", alerta.